O Guião literário


No meu processo de trabalho a história escrita (Guião) vem antes da BD.
Registam-se os primeiros raciocínios que vão definir em traços muito gerais aquilo que irá ser a história. De seguida, com base nas primeiras investigações anotam-se pontos chaves do enredo e cria-se uma primeira estrutura da narrativa (com principio, o meio e fim). Com naturalidade o enredo vai ficando mais complexo e as notas rapidamente passam a escrita. Começa-se a dar resposta a algumas questões e surgem dezenas de outras. A narrativa está em constante mudança em busca de uma estrutura simples e coerente.

Quanto maior for o envolvimento e dedicação na escrita, mais natural irá parecer o enredo assim como os personagens. Podemos dizer que o processo de criação do Guião é muito semelhante à montagem de um puzzle em que a construção da imagem demora no arranque e precipita-se no fim.

A escrita obriga-nos a uma maior reflexão e por essa razão permite-nos raciocinar sobre questões complexas da narrativa. A definição do perfil dos personagens é um excelente exemplo disso pois torna-se imprescindível que esteja coerente com as suas motivações dentro do contexto da a narrativa. A “consciência ampliada” da escrita também permite ao autor um poder de decisão quanto ao uso de metáforas visuais (por ex.: a utilização da chuva para reforçar o estado de espirito de um personagem).
A criação de um Guião apresenta outras vantagens não menos importantes, tais como a estruturação da narrativa de uma forma criteriosa, o encadeamento rigoroso das acções, imposição de ritmos narrativos diferenciados, etc.

Sem Guião uma história adaptada à Banda Desenhada corre o risco de ser feita de forma  arbitrária e superficial podendo tornar-se desinteressante e inverosímil.

Desenhar e escrever são duas formas diferentes de contar histórias por isso é inevitável haja necessidade de ajustes narrativos.

Imagem: Poses de acção da Edite

Narrativa - Prancha 05 | Vinheta 4 (Cap. I)


Não sei quanto tempo fiquei ali… estática a tentar perceber o significado daquilo mas a fraca luz do sótão, o meu cansaço e uma enorme coincidência serão com certeza uma boa justificação para tudo isto.
O chamamento da minha tia tira-me do transe
— Edite, o Almoço está na mesa! - grita.
— Vamos comer! - Reforça
— Desço já tia! - Grito de volta.
— Dá-me um minuto! Volto a gritar enquanto fecho o livro e me preparo para descer.

Narrativa - Prancha 05 | Vinhetas 1 a 3 (Cap. I)


Rodo o corpo para agarrar melhor o objecto e começo a puxá-lo. Pela forma, textura e pela torção que faz quando puxo, percebo que é um livro. Ao retira-lo, seguro-o com ambas as mãos. Ignoro o manto de pó e sento-me de pernas cruzadas onde o apoio inclinando-me para a luz. Fico a observá-lo. Tem ar de ser bem antigo, um daqueles que se guardam em vitrinas de museus, e pelo aspecto deve estar aqui à muito tempo.
A capa de cabedal parece irremediavelmente danificada pelo tempo e pelos maus tratos. Começo a percorrer a suave textura da pele com a ponta dos dedos que encontram ocasionalmente os baixos relevos que formam os seus delicados e enigmáticos desenhos.

Num ímpeto, como se respondesse a um apelo irresistível, abro a capa que vem com outra folha agarrada. Analiso a página seguinte, amarelada pelo tempo e manchada pela humidade. Ao meio apresenta um texto que aparenta ser o título escrito em caracteres estranhos.
Os meus olhos descem pela página e o que vejo no canto inferior direito faz-me disparar o coração.

“Olá Edite, como estás?” - vejo escrito à mão.

Paraliso por uns momentos pois fico com a sensação que aquelas palavras se materializaram naquele instante. O azul vivo e brilhante da tinta contrastam com o restante texto, debotado. Sinto o cheiro de tinta no ar mas o que me incomoda verdadeiramente é que o conteúdo parece ser dirigido a mim.

Prancha 05 - "O Livro" (storyboard)


Segundo o filme “Western vs Eastern Storytelling - What's the Difference?”, a versão da história “O Livro” que apresento (1.ª versão) apresenta um storytelling do género Ocidental.

O facto da história ter apenas um herói foi uma opção assumida desde o início apesar de não me sentir confortável com ela, uma vez que se poderia revelar redutora.
A opção manteve-se até conhecer “Nakama” a palavra mencionada no filme, como sendo a grande diferença entre o storytelling Ocidental e Oriental.

Após uma rápida pesquisa encontrei o site Urban Dictionary, que define “Nakama” como uma palavra Japonesa que significa amigo ou camarada.
Dentro de um contextos mais específico como a manga, poderá significar: “conjunto de pessoas mais intimas do que família”.

Segundo o filme, “Nakama” refere-se a um grupo de Heróis amigos com capacidades diferentes, liderado por outro herói e todos mobilizados para a mesma missão.

Uma família de heróis unidos na resolução de um único desafio parece-me uma ideia promissora e com potencial. Neste momento reescrevo uma segunda versão da história.

Character Design - Edite




Personagens: Antes da representação visual um personagem (por ex., estatura; peso; maneira de vestir; adereços; etc.) é necessário definir alguns dos aspectos “menos visíveis” da sua personalidade e quotidiano (por ex., o que a motiva ou desmotiva; o seus gostos; os seus hábitos; elementos da família com quem priva; amigos com quem partilha as experiências; os inimigos; os locais frequenta; etc..).

Eles são o elemento mais importante da história pois é com os personagens que o leitor cria (ou não) empatia e participa nas aventuras. São eles que conduzem a audiência envolvendo-a na alegria e no sofrimento, na desgraça e no sucesso e na procura das soluções para os problemas que vão surgindo e que têm de ser superados. Um personagem verosímil é cativante e enriquecedor e pode ser determinante para a permanência do leitor na história.

Por essa razão é importante que os personagens sejam criados com o máximo de informação “menos visível” possível para que possa ser colocada ao serviço da história.

Imagem: Um dos últimos estudos da Edite que é a personagem principal de “O Livro”.


Narrativa - Prancha 04 | Vinhetas 3 a 5 (Cap. I)


"De repente o crepitar das tábuas dá lugar a um estalido forte e grave.
O chão cede por baixo do meu pé direito que se afunda num buraco ao mesmo tempo que a película cinzenta de pó é rompida pela primeira vez em muitos anos. De imediato suspendo a respiração para impedir que as partículas me entrem para a boca ou nariz. Semi-serro os olhos e atordoada fico a olhar para o feixe de luz que entra pela única janela que ali existe e que parece ampliar a quantidade de partículas suspensas que me envolvem num abraço, que me convida a permanecer.

Superada a surpresa e afastando o medo, tento adaptar-me à iluminação mais ténue ao nível do chão. Inclino-me para a frente enquanto apoio cuidadosamente as mãos no soalho apodrecido. Com a mão direita contorno as tábuas à volta do tornozelo em busca de uma folga até encontrar uma mais fragilizada, que se esfarela quando a pressiono.

Estou livre e curiosa. Pego no telemóvel que trago no bolso e uso-o como lanterna. Aponto-o para o interior do buraco na tentativa de perceber em que superfície macia e confortável se apoiou o pé. Parece um embrulho cuidadosamente escondido.
Com a ponta dos dedos agarro o pano envelhecido que o envolve e quando puxo rasga-se sem que o objeto que protege se mova."

Narrativa - Prancha 04 | Vinhetas 1 e 2 (Cap. I)


Com cuidado, avanço paço-ante-paço numa irresistível viagem no tempo, tropeçando em memórias felizes que me abandonaram há já muito e das quais já não tinha consciência. Sou bombardeada por inúmeras emoções à medida que observo o cenário.

Continuo a avançar. Desvio-me dos objetos maiores que ostensivamente teimam em ficar no caminho. Apesar do esforço que faço para não sobrecarregar as tábuas sob os meus pés, tenho a sensação de que a delicada superfície que percorro pode ceder a qualquer momento.