Narrativa - Prancha 05 | Vinhetas 1 a 3 (Cap. I)


Rodo o corpo para agarrar melhor o objecto e começo a puxá-lo. Pela forma, textura e pela torção que faz quando puxo, percebo que é um livro. Ao retira-lo, seguro-o com ambas as mãos. Ignoro o manto de pó e sento-me de pernas cruzadas onde o apoio inclinando-me para a luz. Fico a observá-lo. Tem ar de ser bem antigo, um daqueles que se guardam em vitrinas de museus, e pelo aspecto deve estar aqui à muito tempo.
A capa de cabedal parece irremediavelmente danificada pelo tempo e pelos maus tratos. Começo a percorrer a suave textura da pele com a ponta dos dedos que encontram ocasionalmente os baixos relevos que formam os seus delicados e enigmáticos desenhos.

Num ímpeto, como se respondesse a um apelo irresistível, abro a capa que vem com outra folha agarrada. Analiso a página seguinte, amarelada pelo tempo e manchada pela humidade. Ao meio apresenta um texto que aparenta ser o título escrito em caracteres estranhos.
Os meus olhos descem pela página e o que vejo no canto inferior direito faz-me disparar o coração.

“Olá Edite, como estás?” - vejo escrito à mão.

Paraliso por uns momentos pois fico com a sensação que aquelas palavras se materializaram naquele instante. O azul vivo e brilhante da tinta contrastam com o restante texto, debotado. Sinto o cheiro de tinta no ar mas o que me incomoda verdadeiramente é que o conteúdo parece ser dirigido a mim.

Prancha 05 - "O Livro" (storyboard)


Segundo o filme “Western vs Eastern Storytelling - What's the Difference?”, a versão da história “O Livro” que apresento (1.ª versão) apresenta um storytelling do género Ocidental.

O facto da história ter apenas um herói foi uma opção assumida desde o início apesar de não me sentir confortável com ela, uma vez que se poderia revelar redutora.
A opção manteve-se até conhecer “Nakama” a palavra mencionada no filme, como sendo a grande diferença entre o storytelling Ocidental e Oriental.

Após uma rápida pesquisa encontrei o site Urban Dictionary, que define “Nakama” como uma palavra Japonesa que significa amigo ou camarada.
Dentro de um contextos mais específico como a manga, poderá significar: “conjunto de pessoas mais intimas do que família”.

Segundo o filme, “Nakama” refere-se a um grupo de Heróis amigos com capacidades diferentes, liderado por outro herói e todos mobilizados para a mesma missão.

Uma família de heróis unidos na resolução de um único desafio parece-me uma ideia promissora e com potencial. Neste momento reescrevo uma segunda versão da história.

Character Design - Edite




Personagens: Antes da representação visual um personagem (por ex., estatura; peso; maneira de vestir; adereços; etc.) é necessário definir alguns dos aspectos “menos visíveis” da sua personalidade e quotidiano (por ex., o que a motiva ou desmotiva; o seus gostos; os seus hábitos; elementos da família com quem priva; amigos com quem partilha as experiências; os inimigos; os locais frequenta; etc..).

Eles são o elemento mais importante da história pois é com os personagens que o leitor cria (ou não) empatia e participa nas aventuras. São eles que conduzem a audiência envolvendo-a na alegria e no sofrimento, na desgraça e no sucesso e na procura das soluções para os problemas que vão surgindo e que têm de ser superados. Um personagem verosímil é cativante e enriquecedor e pode ser determinante para a permanência do leitor na história.

Por essa razão é importante que os personagens sejam criados com o máximo de informação “menos visível” possível para que possa ser colocada ao serviço da história.

Imagem: Um dos últimos estudos da Edite que é a personagem principal de “O Livro”.


Narrativa - Prancha 04 | Vinhetas 3 a 5 (Cap. I)


"De repente o crepitar das tábuas dá lugar a um estalido forte e grave.
O chão cede por baixo do meu pé direito que se afunda num buraco ao mesmo tempo que a película cinzenta de pó é rompida pela primeira vez em muitos anos. De imediato suspendo a respiração para impedir que as partículas me entrem para a boca ou nariz. Semi-serro os olhos e atordoada fico a olhar para o feixe de luz que entra pela única janela que ali existe e que parece ampliar a quantidade de partículas suspensas que me envolvem num abraço, que me convida a permanecer.

Superada a surpresa e afastando o medo, tento adaptar-me à iluminação mais ténue ao nível do chão. Inclino-me para a frente enquanto apoio cuidadosamente as mãos no soalho apodrecido. Com a mão direita contorno as tábuas à volta do tornozelo em busca de uma folga até encontrar uma mais fragilizada, que se esfarela quando a pressiono.

Estou livre e curiosa. Pego no telemóvel que trago no bolso e uso-o como lanterna. Aponto-o para o interior do buraco na tentativa de perceber em que superfície macia e confortável se apoiou o pé. Parece um embrulho cuidadosamente escondido.
Com a ponta dos dedos agarro o pano envelhecido que o envolve e quando puxo rasga-se sem que o objeto que protege se mova."

Narrativa - Prancha 04 | Vinhetas 1 e 2 (Cap. I)


Com cuidado, avanço paço-ante-paço numa irresistível viagem no tempo, tropeçando em memórias felizes que me abandonaram há já muito e das quais já não tinha consciência. Sou bombardeada por inúmeras emoções à medida que observo o cenário.

Continuo a avançar. Desvio-me dos objetos maiores que ostensivamente teimam em ficar no caminho. Apesar do esforço que faço para não sobrecarregar as tábuas sob os meus pés, tenho a sensação de que a delicada superfície que percorro pode ceder a qualquer momento.

Prancha 04 - "O Livro" (storyboard)


"O livro" é um projecto literário criado com o objectivo de ser adaptado à Banda Desenhada e que tem pressuposto simples: contar histórias da História de forma lúdica e interessante com recurso a uma narrativa emocionante e romantizada.

Associada a esta ideia está também a preocupação de uma produção rápida.

Assim que comecei a "desenrolar este novelo" apercebi-me que o “pressuposto simples” se complicou e para que a história pudesse ser produzida e implementada como planeado, não me restou outra opção senão simplificá-la. Comecei por aperfeiçoa-la nalguns pontos, sempre em busca de algo mais "controlável".

Este processo de simplificação foi rápido e permitiu que a história conservasse a sua identidade, deixando-a com um bom potencial de evolução.

As pranchas que estou a disponibilizar ainda pertencem à primeira versão da história.

Narrativa - Prancha 03 | Vinheta 03 (Cap. I)


Por todo o lado se acumulam objetos de todas as formas e feitios. Alguns perderam a sua utilidade com o tempo, outros nunca a tiveram e só ali estão pelo capricho e imaginação fértil de 3 crianças, que em determinada altura elegeram aquele local como o favorito para as suas brincadeiras.
Lembro-me da felicidade estampada na cara da minha mãe quando nos via a correr aos gritos pela cozinha na direcção do sótão, totalmente absorvidos na imaginação da brincadeira.

Éramos uma família feliz!

Os meus tios, os meus primos, a casa, a pocilga,  a capoeira, o trator, a ribeira, o pinhal, era tudo o que não tínhamos na grande cidade. Aqui tudo era permitido. Sentia-mo-nos adultos a viver aventuras adultas.

Com o desaparecimento do pai toda a alegria desapareceu como que absorvida por um buraco negro. Passo a mão pelos olhos na tentativa de impedir uma lágrima mais rebelde.

Olho para para aqueles objetos, todos eles familiares, dispostos de forma aparentemente desorganizada mas com um padrão, o padrão de brincadeiras interrompidas à espera de serem recomeçadas.
Aproximo-me da velha arca, certamente  recheada com os  mesmos objetos da minha infância. Observo-a mas não me atrevo a abri-la pois sinto que se o fizer, uma memória feliz vai desaparecer para sempre.
Junto dela estão as lamparinas de azeite que nunca cheguei a ver em pleno desempenho das suas funções pois tornaram-se desnecessárias após a chegada da electricidade. Mais à frente estão os livros de histórias infantis, os livros escolares e as sebentas todos empilhados, amarelados pelo sol e encarquilhados pela humidade. Ali está a velha ardósia da avó, herdada pelo tio, já meio partida; os montes de sapatos velhos desencontrados ou sozinhos, caixas de cartão recheadas de pequenos objectos isolados; brinquedos que pela sua simplicidade tinham a capacidade de nos estimular a criatividade em brincadeiras épicas; os bancos de madeira que ali foram colocados na esperança que se tornassem úteis mais uma vez; as ferramentas do avô trazidas para aqui durante as brincadeiras e que foram privadas de mais alguns momentos de utilidade, ficando no esquecimento. Estes objectos continuam aqui como me lembrava, agora unidos pelo fino manto cinzento-acastanhado que os faz partilhar o mesmo destino: o esquecimento.